Gabriel é, desde 2001, professor da sala de recursos do CIEJA (Centro de Educação de Jovens e Adultos) Campo Limpo, escola pertencente à Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Ele nos conta sua experiência com os desafios inclusivos, ao longo da pandemia O maior deles, em sua visão, foi a inclusão social. E neste relato vocês acompanham um pouco da experiência transformadora vivida por eles.
Antes de contar sobre a prática inclusiva, ele faz um breve relato sobre o Campo Limpo.
O CIEJA-CL tem a preocupação inicial de acolher da melhor forma possível todo aluno que retorna à escola, de modo que ele se sinta bem atendido, continuamente motivado e devidamente orientado para que não se atemorize diante dos desafios iniciais (e ao longo do processo) desse retorno. Além disso, o CIEJA trabalha, eventualmente, para que os alunos não se sintam incapazes ou desistam de estudar devido a problemas de qualquer ordem.
Um segundo aspecto importante, que vale ser destacado, é a realidade marcante do CIEJA-CL. O Centro atende um número grande de alunos com deficiências físicas e intelectuais. Há um bom tempo essa unidade escolar tem envidado esforços para acolher e oferecer educação digna e de qualidade para os alunos com deficiências ou sem.
O terceiro ponto e, talvez o mais “capital” é que nesse espaço deve vigorar o princípio perene e esforço contínuo de combate a qualquer tipo de preconceito e discriminação. Essa preocupação estende-se a todos os segmentos da escola: corpo docente, APEs, AVEs, funcionários da cozinha, limpeza, transporte escolar, enfim todos os que de alguma forma atuam nesse espaço.
A realidade e práticas diárias no CIEJA-CL, antes da preocupação com currículos e conteúdos, são pautadas por valores e no compromisso em defender, disseminar e fazer valer valores humanos como respeito, acolhimento, cuidado, bem-estar, responsabilidade, solidariedade, alegria, confiança, compromisso com ‘o ensinar e aprender’, amor e transformação.
Todos são motivados, questionados e desafiados a rever pontos de vista, crenças e estereótipos que levam à intolerância, ao ódio e ao distanciamento das pessoas para assim aproximá-las e envolvê-las na construção de um ambiente de convívio, aprendizado e bem-estar.
Saliente-se a essa altura que o CIEJA tem em Paulo Freire a sua inspiração e fundamentação da sua linha pedagógica. Cabe ainda mencionar que o Cieja busca se inserir no conceito de Escola Democrática, com portões abertos durante todo o dia letivo, propiciando momentos coletivos para promover assembleias onde todos podem se manifestar. O mesmo procedimento é adotado no início do ano com a proposta de escolha de um tema gerador para o semestre ou para o ano todo. Alunos e alunas são sensibilizados e instados a apresentar, defender e eleger um tema gerador para nortear o currículo do semestre ou do ano letivo.
É com essa introdução que Gabriel contextualiza o ambiente para o qual foram pensadas as práticas inclusivas relacionadas às questões sociais. Gabriel acredita que todos que estão ali no Cieja, de alguma forma estão em situação de inclusão já que em algum momento de sua vida escolar, os jovens e adultos que ali estudam foram excluídos do processo de educação.
Eu quero relatar duas experiências que teoricamente podem não parecer tão significativas , mas, na prática, sentimos que eram. Eu trabalho no Cieja Campo Limpo, escola que oferece ensino fundamental para jovens e adultos. São muitos adolescentes, estudantes, trabalhadores, jovens em vulnerabilidade.
O Campo Limpo é uma área marcada pela discriminiação, violência e todos os problemas que conhecemos e, quando o isolamento começou, o grupo de professores pensou em como entrar em contato com os alunos. Tínhamos curiosidade de saber como eles estavam, e como eles estavam encarando a realidade.
Decidimos que faríamos contato via telefone. Nesse momento, já surgiram os primeiros problemas. Nós, como professores, não temos contato com todos os alunos. A administração passou as fichas mas queríamos saber o que conversar.
A partir daí , elaboramos um questionário de 15 perguntas para entender a situação de cada aluno. Uma das grandes motivações no Cieja é o acolhimento .Este contato foi para demonstrar atenção e para lembrar para a comunidade que não esquecemos deles. Muitos ficaram até surpresos. No questionário (que vocês poderão acompanhar em anexo) tinham questões sobre saúde, grupo de risco, se tinham cuidados necessários, a situação financeira entre outras coisas. Sabíamos que íamos ter que estabelecer contatos e enviar propostas pedagógicas.
Neste questionário também fizemos perguntas sobre os sentimentos em relação ao afastamento da escola (saudade, indiferença, tristeza, desânimo, preocupação com a formatura) e essa foi a primeira experiência mais significativa. Essa etapa de contato durou por volta de 10 dias. A dificuldade financeira e de acesso era enorme. Os alunos e familiares se sentiram muito valorizados, alguns ficaram surpresos e, para nós, às vezes isso não faz sentido, mas para alguns alunos esse contato foi fundamental para estimular o trabalho pedagógico inclusivo.
Nesse momento muitos tiveram necessidade de falar. Nós “esticávamos a prosa” continuando o vínculo estabelecido anteriormente.
Com esse relato Gabriel conta algo que nos parece simples mas que reverbera nas ações seguintes, transformando e alimentando o espaço escolar em um ambiente cada vez mais inclusivo.
A segunda experiência foi um desdobramento da primeira. Diante da carência, ficamos preocupados em como lidar com a vulnerabilidade. O problema da fome ainda é muito sério e a pergunta nos rodeava: Como poderíamos resolver isso?
Em uma reunião, discutimos e pensamos em construir um voluntariado para doar cestas. Professores doaram e contamos com parceiros externos. Na primeira etapa da iniciativa, foram quase 200 cestas. A segunda etapa de trabalho foi a logística da distribuição. Em um primeiro momento, fizemos a distribuição em domicílio, carregamos nos carros a quantidade que cabia, pegamos os endereços e fizemos essa ação. Em um segundo momento, a escola percebeu que os riscos eram maiores na entrega das cestas. Os que conseguiam, retiravam na escola. Para isso contamos com equipe de apoio, para organizar a fila e a higienização. Continuamos a entregar em algumas casas para quem não conseguia ir pra escola por diversos motivos.
Essa experiência me fez pensar em algumas coisas. A primeira dificuldade foi a comunicação, que precisava ser mantida.
Tivemos muita preocupação com quem não tivemos contato. Por fim, o desafio que permanece latente é o trabalho com as questões emocionais.
Com a finalização desse relato, Gabriel nos conta a difícil experiência de entrar em contato direto com os desafios sociais de sua comunidade. Mas, com uma pesquisa feita, um projeto consolidado que prioriza cuidar da diversidade e do respeito ao coletivo, o esforço de cada um dentro do Cieja abriu portas para que seus alunos diminuíssem seus sofrimentos e um pouco de suas vulnerabilidades. Dessa forma, foi possível abrir brechas para os desafios pedagógicos e para a reflexão do que é prioridade na educação. Uma experiência inclusiva não se pauta necessariamente por planejamentos pedagógicos dentro da sala de aula. Uma vez que a escola se responsabiliza por lutar contra a discriminação, oferecendo uma educação de qualidade para todos, uma experiencia como essa nos enriquece com um olhar mais diverso e inclusivo.
Relato por Gabriel Squara